ESQUERDA, VOLVER
Um derrame afetou gravemente o hemisfério direito do cérebro da sr. S., paciente de Oliver Sacks. No hospital, ela reclamava que enfermeiras não lhe serviam sobremesa ou café e que seu prato sempre vinha com muito pouca comida. Por mais que as funcionárias lhe dissessem que tinham, sim, servido tudo certinho e que bastava olhar para a esquerda, a sr. S. não obedecia. Até que elas dessem uma meia-volta na bandeja.
A senhora S. sofria de hemi-inatenção visual - um déficit neurológico que faz o paciente enxergar apenas um lado do campo visual. Em geral, ele acontece no lado esquerdo do mundo visual, em decorrência de um dano do lobo parietal direito, região responsável pelo reconhecimento do próprio corpo. Por isso, é comum que o hemi-inatento se barbeie ou se maqueie apenas do lado direito. Se for comer algo no prato, vai em geral deixar o lado esquerdo cheio.
S. acabou criando algumas estratégias para conviver com sua deficiência. "Quando suas porções parecem pequenas demais, ela gira para a direita, mantendo os olhos à direita, até que metade da metade antes não encontrada fique à vista. Se não estiver saciada (...), fará uma 2ª rotação até que a 4ª parte restante fique à vista", escreve Sacks. Não bastaria girar o prato, em vez de a si mesma? Sim. "Mas é estranhamente difícil. Já girar na cadeira parece mais natural".
Só consegue ver um lado do campo visual, em geral o esquerdo, por causa de lesões no lobo parietal direito.
2,5% das pessoas são incapazes de reconhecer rostos desde a infância, muito mais comum que a prosopagnosia adquirida. Já outras agnosias visuais são em geral causadas por acidentes, como derrames e intoxicações.
A sua retina é quem capta as imagens no seu olho. Mas, até você as perceber e reconhecer, elas precisam vencer um tortuoso caminho
1. A câmera
No fundo do olho, os fotorreceptores da retina retêm imagens e as transformam em impulsos elétricos, depois transmitidos pelo nervo óptico em direção ao cérebro.
2. O cabeamento
No cérebro, os nervos ópticos se cruzam no "quiasma óptico". Lá, a imagem do lado direito do campo visual dos dois olhos é desviada para o lado esquerdo do cérebro, e vice-versa. A partir daqui, os neurônios são distribuídos para regiões que controlam o corpo de acordo com a luz e outras que processam a imagem.
3. Hardware
No "andar de baixo" do cérebro, a luminosidade interfere fisicamente no nosso corpo.
• O hipotálamo, que controla nosso metabolismo, regula o "relógio biológico" de acordo com a luz.
• O pré-teto controla os músculos da íris para contrair e dilatá-la conforme a intensidade da luz que atinge o olho.
• O colículo superior orienta os movimentos da cabeça em função do alvo em que nós fixamos o olhar.
4. Software
A informação vai até o córtex visual primário, no lobo occipital. Lá se organizam as informações visuais - o campo visual superior e o inferior, as imagens vistas por ambos os olhos (para formar a visão 3D), as formadas na periferia do campo visual e os objetos em que nos focamos.
Uma vez percebidas essas imagens, as informações seguem para as regiões vizinhas do córtex primário visual:
• O córtex extraestriado detecta as cores.
• A área mesotemporal detecta movimentos.
• O lobo parietal é responsável pela percepção espacial.
• O lobo temporal reconhece o objeto.
Aos dois anos, Susan Barry passou por sua primeira cirurgia para corrigir um estrabismo. Desde então nunca se deu conta de que havia algo de muito diferente na sua visão - até assistir a uma aula de neurofisiolgia no último ano de graduação.
Enquanto comentava um experimento com gatos estrábicos, seu professor mencionou que o cérebro desses bichanos provavelmente já estava conectado de tal forma que só processava imagens em duas dimensões. Intrigada, Susan correu para a biblioteca para fazer testes de visão em 3D - e falhou em todos. Descobriu que vivia em um mundo bidimensional.
Isso aconteceu porque o mau alinhamento de seus olhos na infância impediu que as células cerebrais responsáveis pela visão binocular se desenvolvessem normalmente. Como todo mundo sabe, para ver em 3D é necessário compor uma imagem a partir da diferença entre duas outras captadas em ângulos diferentes. Mas os ângulos dos olhos estrábicos não "prestavam" isso. Por isso, seu cérebro ignorava um dos olhos.
A visão sem profundidade não impediu Susan de seguir uma vida normal. Ela aprendeu a dirigir, concluiu seu doutorado na Universidade de Princeton e se casou com o astronauta Dan Barry, com quem trabalhou na Nasa. E não é de surpreender. Embora o mundo tridimensional seja mais bacana, não há grandes prejuízos práticos em ver as coisas chapados. Por exemplo, mesmo com um único olho, o americano Willey Post conseguiu ser o primeiro piloto a dar a volta o mundo non-stop.
Como isso é possível? Simples. Enquanto só a estereopsia (nome feio para visão 3D) permite ao cérebro perceber a profundidade, outras dicas também permitem avaliá-la. Como num filme, a visão bidimensional também processa a perspectiva, as sombras, a sobreposição de objetos mais próximos, a diferença da velocidade com que objetos mais distantes se movem em relação aos mais próximos.
E assim Susan seguiu com sua vida normalmente - até que, aos 48 anos, começou a ter outros problemas de visão. Os músculos dos olhos se cansavam mais depressa e o mundo parecia tremular quando olhava de longe.
Quando foi ao oftalmologista, descobriu que tinha um desvio do campo visual do olho esquerdo. Além de colocar em seus óculos um prisma que corrigia esse desvio, começou a fazer terapia visual. Foi então que algo surpreendente aconteceu com ela.
A direção do carro saltou inesperadamente do painel. Outro dia, o retrovisor pulou à frente do parabrisa. Depois, a porta de seu escritório parecia projetar-se em sua direção. Um espaço surgiu entre seu prato e o garfo. O esqueleto de um cavalo no subsolo do prédio onde trabalha pareceu tão saliente que precisou pular para trás. Tudo parecia tão novo que Sue chegou a dar umas escapadas do trabalho só para ver plantas e flores em diferentes ângulos.
A medicina ainda não sabe exatamente se os neurônios especializados na esteropsia estão presentes desde o nascimento nem o que acontece com eles se o paciente não experimentar a visão binocular no início da vida.
Tampouco se sabe se essas células podem se recuperar mais tarde se o indivíduo aprender a posicionar os olhos para ter a visão binocular. Mas Sue conseguiu recuperar o que antes se acreditava impossível.