Jornal de Angola (JA) – O que é a anemia falciforme?
Adelaide Matias (AM) – É uma doença de origem genética, que, habitualmente, é mais grave quando duas pessoas, que se relacionam são portadoras da doença. É uma doença que é grave porque o doente continua numa situação instável, secundariamente à existência de uma anemia molítica, na medida em que vai haver falta de distribuição de gases transportados pelo sangue a nível de todo o organismo, levando a que haja uma debilidade, um défice de irrigação que, nessa altura, leva ao surgimento da sintomatologia que se vai agravando, muitas vezes originando a morte.
JA – Quais são os sintomas da doença?
AM - De uma maneira geral, os doentes de anemia falciforme têm infecções de repetição. São doentes que podem ter crises vasocosivas, síndrome torácicos agudos, muitas vezes alterações dos factores de coagulação, que levam ao aparecimento de outro tipo de sintomas, chegando mesmo a ter um acidente vascular cerebral, enfim, é variável a situação clínica, que depende muito do estado do paciente em si.
JA – Quais são os outros sintomas a ter em conta?
AM – Existem outros sintomas da doença como dores nas articulações. Habitualmente, os doentes ficam com os olhos amarelados, febres, isto já na sequência de uma infecção que pode ser do trato respiratório ou não. Têm, às vezes, pequenas lesões micóticas a nível da pele e podem atingir um estado de dificuldade respiratória.
JA – O facto da doença ser mais grave quando um casal é portador da anemia falciforme aumenta o risco de os descendentes serem potenciais doentes dessa patologia?
AM – Quando as duas pessoas são portadoras da doença, um dos filhos do casal corre o risco de ser da variante SS, que é a mais grave da anemia falciforme. Portanto, no cruzamento entre as duas pessoas pode haver dois filhos que não tenham a doença e um terceiro vir a ter.
JA – Quando os pais são portadores da anemia falciforme os filhos sofrem obrigatoriamente da patologia?
AM – Os descendentes do casal com anemia falciforme podem ser portadores da variante AS, ou, então, da variante SS.
JA – Qual é a diferença entre essas duas variante da doença?
AM – A SS é mais grave. A nível do cromossoma do doente tem de facto uma percentagem de alteração, de troca das proteínas, o que faz com que haja um agravamento da doença. Portanto, é diferente ser um doente AS e um SS. Na variante AS, conseguimos controlar melhor os doentes porque nesses casos a anemia existe, mas nem sempre a situação é tão grave como a dos doentes SS. As crises são mais controladas, na medida em que não aumentam a gravidade no desenvolvimento da patologia.
JA – Este ano celebra-se o centenário da descoberta da doença. Quando é que ela foi exactamente descoberta?
AM – Em 1910, ano em que se passou a dar maior atenção à patologia por ter começado a ter uma dimensão quase mundial. Existe na Europa por causa das trocas comerciais e mesmo de escravos, portanto de pessoas que se deslocaram para outros países e que eram portadoras da doença, o que permitiu um alastramento em termos de quantificação de números de casos.
JA – Há alguns anos, o médico beninense Jerôme Medegan apresentou em Angola um medicamento, o VK500, que, garantia, curava a doença. A utilização desse medicamento é viável para os doentes de falciformação?
AM - O que é normal, entre nós, é atendermos o paciente de acordo com estado de gravidade que apresenta. Os pacientes são hidratados e, de acordo com os exames de diagnósticos, podemos introduzir os antibióticos, usar uma droga, a hidroxiuréia, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), muito cara. O suporte para o atendimento desses doentes muitas vezes não é bem feito. As pessoas não compreendem, não sabem, não conhecem e aceitam fazer terapias que não têm nada a ver com a medicação correcta.
JA – A hidroxiuréia existe em Angola?
AM – É difícil encontrar, mas temos. Em relação ao VK500, naturalmente que não pode cada um comprar o medicamento que quiser e instituir. Existem normas internacionais que devem ser cumpridas. Acredito, de acordo com aquilo que pensa o Ministério da Saúde, que há algum item que o VK500 traz que não é aceite a nível internacional. Não vou explicar porquê. Acredito que a parte científica de quem fez o VK500 deve estar, sem dúvida nenhuma, a tentar ultrapassar todos esses trâmites. A nível da clínica Multiperfil nunca utilizamos o VK500. Tratamos os doentes da melhor forma possível sem o VK500. O que aguardamos, e com alguma expectativa, é que o cientista consiga ultrapassar esta fase de aceitação internacional. Penso que, a partir daí, nos vai ser mais útil, na medida em que ele, sendo africano, pode ajudar a tratar muitos doentes em África, um dos continentes mais atingidos pela doença.
JA – Até que ponto a terapia com a hidroxiuréia é benéfica para os doentes de falciformação?
AM - O aumento da hemoglobina fetal reduz a gravidade da anemia falciforme, prevenindo a formação de polímeros de hemoglobina S. Inicialmente, pensou-se que o efeito benéfico de hidroxiuréia era pelo aumento da concentração de hemoglobina fetal, mas estudos posteriores mostraram que a redução dos neutrófilos, monócitos e reticulócitos também podem ser clinicamente relevantes. A hidroxiuréia também aumenta lentamente a concentração total de hemoglobina.
JA – Qual é o número exacto de pessoas que sofrem de anemia falciforme em Angola?
AM – Falamos em estimativas, mas, a nível da Clínica Multiperfil, avaliamos mais de cem doentes por mês. Acredito que a nível do hospital Josina Machel e de outras unidades os números sejam maiores. Estimamos que nasçam em Angola, aproximadamente, por ano, cinco mil crianças que acabam por morrer vítimas de falciformação.
JA – A falta de diagnóstico precoce está na base do tão elevado número de crianças que morre anualmente de falciformação?
AM – Exactamente, não há muitos laboratórios de referência para poderem ser diagnosticados esses casos. E a nível de laboratório é preciso conhecer bem a técnica, saber executá-la e ser, posteriormente, enquadrá-la com o diagnóstico que se prevê para dizer se é positivo ou negativo. Este diagnóstico devia ser feito logo ao nascimento, retirando amostra do cordão umbilical. São exames que ainda não temos porque não são obrigatórios. O bebé, quando nasce e até ao sexto mês, tem um nível de hemoglobina fetal alto, o que faz que viva mas sem sintomatologia. Depois do sexto mês, diminui a hemoglobina fetal. O Ministério da Saúde devia tornar obrigatório o exame de anemia à nascença.
JA - Que recomendação deixa ao Ministério da Saúde?
AM - O Ministério da Saúde tem estado empenhado na formação técnica e na criação de novos laboratórios para tentar minimizar a mortalidade por falciformação.
JA – Falou em formação, quantos técnicos de laboratórios para o diagnóstico da anemia falciforme há em Angola?
AM – Não posso falar do país, mas na clínica Multiperfil, há 40 técnicos de laboratório, entre técnicos médios e superiores. Temos técnicos de laboratório formados no país, mas é preciso actualizá-los porque as técnicas de laboratório mudaram muito. Os equipamentos são de última geração, têm uma capacidade de execução mais rápida, daí que seja preciso conhecê-los e manuseá-los para fazer chegar os resultados mais rapidamente ao médico para de imediato tratar o doente.
JA – Todas essas preocupações podem ser abordadas, com profundidade, no Simpósio sobre anemia falciforme, que se inicia amanhã em Luanda?
AM – O que queremos com a realização do simpósio é estarmos mais actualizados, discutir mais sobre falciformação, os vários itens de especialidade na parte cardiovascular, respiratória, a nível dos exames de diagnósticos e do sistema nervoso central. Vamos ter um leque de pessoas com diferentes formações. Como médicos que somos, o tema vai ser orientado a esse nível para que um dia possamos criar um instituto de falciformação e se faça um atendimento diferenciado para esses doentes.
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