Um abismo separa o ser humano dos outros animais que habitam o planeta Terra. Em algum ponto da evolução, passamos a interferir e modificar a natureza de tal forma a favorecer nossa sobrevivência. Aprendemos como adaptar o meio ambiente às nossas necessidades e ensinamos as gerações seguintes a fazerem o mesmo. Atualmente, as “adaptações” que fizemos na natureza perderam seu propósito e até colocamos em risco a existência de todo o planeta com o efeito estufa, a destruição da camada de ozônio e os vazamentos de petróleo nos mares. A capacidade cerebral de armazenar informações e a habilidade para transmiti-las às novas gerações pela memória e aprendizado são responsáveis pelo desenvolvimento da raça humana, mesmo que nem sempre tenhamos aproveitado da melhor maneira nosso poder racional.
A memória é a função do sistema nervoso que permite o registro de experiências vividas e sua recuperação no futuro. Sem a memória, não há o aprendizado e sem ele não há história.
Na verdade, a célula nervosa ou neurônio é o elemento-chave e consegue gravar os eventos da vida por meio de conexões, chamadas sinapses, que ocorrem entre as células e têm longa duração. Os neurônios são células muito diferentes das que existem em outros órgãos, como a pele ou o fígado. Enquanto nossa epiderme é renovada continuamente, as células do fígado se regeneram apenas quando sofrem algum dano, já os neurônios são células permanentes e têm pouquíssima capacidade de regeneração.
Nossas células cerebrais duram a vida toda. Embora exista uma certa fragilidade do tecido nervoso em termos de regeneração, é essa constância ao longo do tempo que permite também a manutenção das memórias e conexões indispensáveis ao nosso computador orgânico pessoal. Cada velha célula nervosa contém em si as marcas de todas as emoções, aprendizados, acertos e erros cometidos por toda a vida. Por isso é indispensável que não seja trocada a cada 120 dias, tal como as células sanguíneas.
No cérebro são mais de 100 bilhões de neurônios conectados em uma rede de proporções inimagináveis. Nos últimos sessenta e poucos anos, passamos de um computador como o ENIAC que pesava várias toneladas para os pequenos e poderosos desktops e workstations capazes de controlar o trânsito de uma metrópolis como São Paulo (mais ou menos, se pensarmos na hora do rush). Todavia, os computadores mais modernos ainda não chegam nem perto da fantástica capacidade de processamento de dados do cérebro humano mais simples. Aos poucos vamos aprendendo a entender melhor o funcionamento dessa máquina cujo manual de usuário ainda estamos escrevendo.
A memória é uma das funções consideradas “distribuídas” no sistema nervoso central. Espalha-se por vários centros cerebrais do mesmo modo que acontece com a atenção, sobre a qual falamos em textos anteriores. As neurociências descobriram que não existe um único lugar específico responsável pela memória, ao invés disso detectaram vários componentes ou tipos de memória que se articulam de modo integrado em rede.
Esse funcionamento cerebral assemelha-se ao que entendemos atualmente comocloud computing, só que bem mais elaborado. Meu falecido professor de neurofisiologia da USP, o ilustre César Timo-Iaria nos ensinava que “o ser humano só inventa coisas possíveis” que já existem na natureza. Assim, nos explicou em uma aula como a fibra óptica tem o mesmo princípio de condução de luz presente em um broto de feijão; a mesma analogia vale para os computadores e o cérebro.
Como funciona, afinal, a memória humana?
Em primeiro lugar, temos as memórias de longo prazo ou tardias. A memória tardia pode ser do tipo explícita (também denominada declarativa) ouimplícita(também chamada de procedimental). Há também um terceiro tipo, relacionada à memória de curto prazo que é chamada de operacional.
A memória explícita é aquela que podemos recuperar como algo claro e que pode ser enunciado verbalmente. Essa memória pode ser do tipo episódica que é contextualizada no tempo e no espaço ou semântica, independente de uma conexão tempo-espacial.
Imagine que você chegou de viagem e está descrevendo sua ida a um restaurante italiano. Você se lembra quem estava com você, a que horas chegaram, como era o local, o vinho que tomou (espero que tenha sido um Barolo) e as iguarias que o acompanharam. Sim, às vezes a comida é para acompanhar o vinho e não o contrário! Tudo isso é memória episódica, ligada a um tempo e local específicos. Já o que significa a palavra vinho, o tipo de comida que é a italiana, com massas ou assados fartos, o sabor de uma sardella e outras tantas coisas que você sabe e pode descrever mas não se lembra nem onde, nem quando aprendeu, a isso chamamos de memória semântica.
Seguindo ainda no raciocínio gastronômico, o modo de manusear os talheres ou de chamar o garçom e tantos outros procedimentos que executamos com o corpo sem pensar e talvez até com dificuldade de verbalizar como o fazemos, a isso chama-se memória implícita.
Por fim, a memória operacional (working memory em inglês) é utilizada por um curto período de tempo e é apagada para dar lugar a outras informações. Uma situação típica acontece quando estamos dirigindo e continuamente olhamos pelos espelhos retrovisores e sabemos, por exemplo, que existe um caminhão ou uma motocicleta à direita, ou ainda um automóvel branco à frente e que sinaliza para virar no semáforo. Todas essas informações são mantidas apenas pelo tempo em que estamos engajados na tarefa e depois são realmente deletadas dos nossos hipocampos, apagadas para sempre.
Há algum tempo, os cientistas acreditavam que em primeiro lugar um evento deveria passar pela memória de curto prazo e depois, de acordo com sua relevância, seria transferido para os sistemas de memória de longo prazo. Hoje se sabe que os sistemas de memória descritos atuam de modo relativamente independente.
Cada um dos aspectos da memória referidos acima são formados por circuitos próprios e específicos. Além disso, os hipocampos, localizados nas porções mais internas dos lobos temporais, parecem juntar os fragmentos localizados em certos giros cerebrais e integra-los em eventos particulares. Assim, as memórias visuoespaciais estão localizadas na região parieto-occipital, as olfativas nos lobos temporais, a noção de tempo nos lobos frontais, enquanto isso, os hipocampos juntam todos os fragmentos de memórias na recordação de um único evento em que você viu, cheirou, caminhou ou falou algo em um determinado lugar e em um certo momento.
Do ponto de vista prático, é interessante compreender que os vários tipos de memória movimentam áreas cerebrais diversas e utilizar todos os meios possíveis para fixar um conteúdo é muito interessante. A repetição e o ensaio mental são uma forma de reforçar a memória, a famosa “decoreba”. Não é tudo, mas ajuda. Também o ato de recontar com as próprias palavras aquilo que leu, ou seja, formar paráfrases, é importante para garantir a assimilação do que foi aprendido. Criar esquemas, gráficos, tabelas e outras formas de apresentação visual ou píctórica de algo que foi expresso em um texto escrito é mais uma maneira de ativar áreas do sistema nervoso que não estavam implicadas até então.
Por fim, garantir que interpretou adequadamente o que leu, reconstruindo a sequencia do pensamento e o encadeamento das idéias do autor completa um método inteligente de estudar e aprender para toda a vida.
Voltando à questão inicial, dissemos que os seres humanos se distinguiram dos outros animais pela capacidade de acumulação de conhecimento que foi transmitido pela história e pela cultura. Talvez pudéssemos usar melhor nossas capacidades. Se cultivarmos mais a memória das coisas fundamentais, é possível que lembremos do porquê vivemos do modo que vivemos e que compartilhamos todos o mesmo planeta. Com isso em mente, poderemos ter uma atitude mais responsável com a vida de todos os seres e habitar mais harmoniosamente nossa casa planetária.
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